sábado, 28 de novembro de 2009

prólogo - A Silhueta


CAIRO, EGITO.

DEZEMBRO DE 1980

Os olhos do professor Gahiji não viam. Cansados, imóveis, indissoluvelmente ligados ao triste cenário daquele recinto com escrivaninhas vazias e empoeiradas. Era fim de ano, a classe fora toda aprovada, o que em sua mente, estavam claras todas as suas conquistas realizadas com muito esforço, sempre em busca da exatidão.

Mestre Fadil, como era chamado por seus alunos, levantou, abrandou seu cigarro, juntou seus livros e dirigiu-se a porta da sala de aula. Apagou uma das luzes e deu seu último suspiro, fixando seu olhar fadigado para aquelas carteiras por alguns instantes. Era o estrépito de seus ensinamentos artísticos, místicos e filosóficos.

Gahiji encosta sua cabeça no batente, para quem o conhecia, era de praxe dizer:
- É momento de reflexão, em busca da inspiração divina.

O evolucionismo filosófico assustava aquele mestre que beirava a inércia de seu comportamento cognitivo. Categoricamente, Gahiji já não era mais o mesmo. Seus cabelos grisalhos para muitos já marcavam o tempo. Este que já não tinha mais volta. Seu mundo já não era mais colorido como seus óleos sobre tela, na verdade, sua realidade já beirava as telas de nanquim. Sem cor, sem tonalidade cromática expressiva.

Era o momento de voltar as suas estirpes. Aquele clima mediterrâneo, que variava com verões calorosos e invernos temperados, não era a época mais suave para abrigar seus ensinamentos. Sua vontade era de rever o velho o Alpheus, seu único, fiel e verdadeiro amigo. Um grego com quem se dedicou grande parte de suas pesquisas, antes de partir para lecionar na capital do Egito. Estudaram juntos em Súnion, uma península localizada no sul da Grécia, a duas horas de Atenas, onde passavam horas de devaneios junto ao templo de Poseidon.

De volta para casa, caminhando pela noite escura, de olhos fixos ao chão, Gahiji parou no Badru, um bar centrado há alguns minutos da universidade. Entrou, colocou seus incumbes na primeira mesa que avistou, puxou uma cadeira e sentou-se. Pacato, sem muitas palavras, apenas apresentava aquele semblante melancólico que amargurava sua fisionomia exausta.
Acendeu um cigarro, e por ali ficou.

- Pois não senhor, gostaria de beber algo? Indagou o empregado. Um rapaz de quinze ou dezesseis anos de idade, franzino, cabelos pretos e lisos.
- Por enquanto, apenas um Zahib, por favor. Disse suavemente.

Toda quarta-feira após a última aula, Gahiji e seus alunos, tomavam um Zahib antes de degustar qualquer alimento. Em sua solidão, uma aguardente era sua melhor companhia naquela noite.

Tudo naquela ocasião era pura sensação de amargura. Sozinho, sentado numa mesa de bar, um cigarro apoiado ao cinzeiro a espera de uma bebida, não demorou muito para surgir memórias dos alegres momentos que passava com seus eternos aprendizes. Foram apenas três anos, em que aquele velho professor de filosofia da arte vivenciou os melhores períodos de sua vida. Aprendeu a dar o melhor de si, a quebrar certos dogmas e paradigmas. Ensinou aos seus discípulos a serem humanos, pois sempre acreditou que a arte é uma mentira, que nos faz abarcar a verdade.

- Aqui está seu Zahib, senhor. Algo mais? Perguntou o assalariado.
- Por enquanto, apenas o Zahib, obrigado. Disse o velho.

Com apenas um gole, bebeu.
Pegou o cigarro do cinzeiro e deu sua última tragada, mitigou o cigarro, acendeu outro logo em seguida e chamou novamente o garçom.

- Ei garoto, por favor.
- Pois não senhor?
- Você sabe me dizer que horas são?
- Sim! São onze e trinta e três, senhor.
- Nossa! Exclamou o professor – Já está tarde, preciso voltar para minha alcova, e terminar meu trabalho.
- Que trabalho senhor? Questionou o menino.
- Nem eu sei garoto, aliás, não sei por qual motivo, entrei neste bar sozinho.
- Você sempre estava aqui cercado de gente senhor, muito me estranha, ver o senhor sozinho, sentado nesta mesa, tomando seu Zahib sem nenhuma companhia.
- Veja como é a vida. No maravilhoso território do silêncio nós tocamos o mistério. Ele é o lugar da reflexão e contemplação, e é o lugar onde nós podemos nos conectar com o conhecimento profundo para o caminho da sabedoria profunda.

O empregado, sem muito entender ficou estatelado.

- O que foi garoto? Perguntou Gahiji.
- Não senhor, nada. Agora entendo o motivo de estar sempre rodeado de pessoas.
- Como assim? Interrogou o velho, sem entender.
- Sempre que chegava ao Badru, nem sempre eu lhe atendia, mas sempre o observava, pois o senhor imprime sabedoria, apenas com seu olhar.
- Longe disso. Se isto fosse verdade, hoje eu não estaria aqui desamparado.
- Mas senhor, da última vez que esteve aqui com seus amigos...
- Alunos... eram meus alunos. Atravancou o velho.
- Sim, da última vez que esteve aqui com seus alunos, ouvi uma frase dita pelo senhor, que me chamou muito minha atenção, e guardei comigo.
- E o que tal frase é essa, posso saber?
- Não me recordo muito bem, mas era algo dizendo que grandes verdades são simples e assim eram os homens...

Gahiji sorri, olha para o menino e diz:
- As maiores verdades são as mais simples, e assim são os grandes homens.

Ao fundo, em tom grave e ligeiramente hostil, ouvia-se:
- Bomani! Bomani! Pare com esta prosa e vá trabalhar! Tem pessoas esperando para serem atendidas.

Assustado, o menino estende sua mão ao velho e diz:
- Obrigado senhor! Muito obrigado... qual é mesmo seu nome?
- Fadil. Gahiji Fadil... e o seu é Bomani? Averiguou.
- Sim senhor! Era o nome do meu avô.
- E você sabe o que significa seu nome? Inquiriu o professor.
- Não senhor!
- Guerreiro. Este é o significado do seu nome.

Contente, o menino se despede com um aperto de mão, retrocedendo ao seu trabalho. O mestre Fadil, deixou algumas Libras a mais em cima da mesa, levantou-se, abancou seus livros e cigarros e dirigiu-se para fora do bar, acenou para o menino que lhe servia e foi embora.

A volta para casa, era momento de reflexão. Marchando pelas ruas do bairro de Midan Tahrir, o centro da cidade moderna do Cairo, o professor, de passos longos e cabeça baixa, assobiava sua canção preferida, mas ao passar em frente ao museu Egípcio, situado na praça de Tahrir, onde abriga a melhor coleção de objetos do antigo Egito do mundo, o mestre Fahil, parava e por ali ficava alguns minutos. Como era de costume, sentava sempre no banco com tons de madeira tabaco, depositava seus livros de lado e ali ficava.

O relógio da praça apontava cinco minutos para a uma hora da manhã, mas Gahiji adorava ficar ali, sentindo a brisa em seu rosto.

Este era um raro momento, em que a nostalgia ficava de lado, para ele, era uma sensação única ficar de frente para aquele lugar, filosofando sobre sua solidão, sobre seu passado, pois para si próprio, sempre carregou o pensamento que para cada coisa que você perdeu você ganhou alguma outra coisa.

Era límpida sua sensibilidade e seu sentimento de perda. Por dentro a angústia de um solitário, por fora, o aspecto de alguém que sempre se consagrou, que lutou que pesquisou, que batalhou e que amou, mas que nunca foi recompensado.

Para sua sabedoria tudo o que tinha feito até então, nada teria sentido, se aquele fato ocorrido tempos atrás, não alterasse mais seu estado de espírito.

(...)

prólogo do meu livro, A Silhueta
verdade e mentiras desenhadas nas escritas

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